Por Dora Cavalcanti e Bruno Salles Ribeiro

Nos círculos jurídicos, é praticamente um consenso que provas obtidas por meios ilícitos não podem ser usadas para acusar, por força de mandamento constitucional. A vedação da prova ilícita, distante de ser uma filigrana processual formalista, é um alicerce do Estado de Direito sem o qual o sistema de justiça transmuda-se em mera encenação para o exercício arbitrário de poder.

Paradoxalmente, esse consenso tentou ser desbastado pelo braço de publicidade da força tarefa da lava jato em Curitiba, que, entre as famigeradas “10 medidas contra a corrupção”, elencava a necessidade de “Ajustes nas Nulidades penais”. Um eufemismo que eclipsava a intenção de criar hipóteses em que provas ilícitas poderiam ser convalidadas. Felizmente, prosperaram os princípios da República Federativa do Brasil, e não os de Curitiba. Após amplo processo de consulta pública, o Congresso Nacional rechaçou as propostas legislativas nesse sentido, resguardando com o pacote anti-crime a higidez do processo penal democrático.

Agora, porém, que o feitiço voltou-se contra o feiticeiro: protagonistas das conversas reveladas pela operação spoofing procuram encontrar justificativas para inviabilizar o conhecimento e o uso das mensagens trocadas no curso de inquéritos e processos, ainda que em favor da defesa de pessoas que foram diretamente impactadas pela relação promíscua e orquestrada entre Ministério Público e Juízo.

No entanto, também é consenso entre os maiores estudiosos do processo penal brasileiro que, ainda que obtidas por meios ilícitos, elementos de prova podem ser utilizados no processo penal, diante da constatação de que essas fontes de informação são meios singulares de demonstração da violação de direitos fundamentais do réu ou acusado.

Em primoroso artigo publicado no Livro das Suspeições[1], Juliano Breda recapitula e atualiza a doutrina sobre o tema (BadaróCasaraGomes FilhoGrinoverLopes Filho, NucciScarance Fernandes e Tavares), anotando que “se admite a prova ilícita em favor do acusado, a fim de prevenir uma condenação injusta pela inexistência ou atipicidade do fato, e, também, em face da violação ao devido processo legal”.

Com essas considerações iniciais, é possível que se analise de maneira técnica a validade dos elementos de prova obtidos pela indigitada operação spoofing. No curso das investigações, foram apreendidos os backups de diálogos de procuradores da República e do ex-juiz da operação lava jato. Do conteúdo de mencionados diálogos, podem emergir duas consequências jurídicas de refração distinta. Por um lado, evidencia-se um possível ajuste entre acusação e juiz que mina por completo a validade da prestação jurisdicional, ante a quebra da imparcialidade. Por outro, emergem suspeitas de possíveis ilícitos praticados pelos envolvidos nas conversas entabuladas.

Nesse último caso, naturalmente, não se pode advogar qualquer outra consequência a não ser a nulidade das provas. Em que pese o Superior Tribunal de Justiça tenha extensa jurisprudência, de viés pouco garantista, no sentido de que as provas obtidas de maneira fortuita podem ser convalidadas, a nosso sentir os procuradores e o juiz, de forma alguma, poderiam ser acusados criminalmente com base nas mensagens que trocaram, na medida em que mencionadas evidências teriam sido obtidas por meio criminoso.

Por outro lado, qualquer acusado criminalmente que possa se valer de mencionadas informações como prova de sua inocência ou de violações às regras do processo tem o direito de acessá-las e de utilizá-las, lícita e validamente, em um processo penal.

E o que é mais interessante. A valoração das consequências jurídicas das trocas de mensagens ora reveladas não será feita por seus protagonistas, mas sim pelas partes atuantes nos eventuais processos em que vierem a ser apresentadas. Espera-se, dessa vez, com a necessária equidistância e respeito aos corolários do devido processo legal.

Uma terceira dimensão, que se amplia a partir de agora, consiste em acompanhar os desdobramentos da nova leva de divulgações para além do universo dos investigados e réus diretamente atingidos pela lava jato. Como se deu nos grandes escândalos de revelação de dados comprometedores, como Wikileaks e Panama Papers, natural que outras pessoas reclamem legitimidade para pedir providências em razão das gravíssimas ilegalidades desnudadas, na esteira do ofício já encaminhado pela Presidência do Superior Tribunal de Justiça.

A briga vai ser boa e é extremamente relevante do ponto de vista da constante necessidade de aperfeiçoamento das instituições. Embora não reflita o comportamento técnico que em regra caracteriza a atuação do Ministério Público Federal, os bastidores da lava jato precisam ser submetidos a escrutínio público para que não se repitam seus métodos. Esse aprendizado passa necessariamente pela invalidação dos resultados obtidos fora das regras do jogo, de modo a desencorajar essa forma de proceder.

[1] Streck, Lenio; Carvalho, Marco Aurélio, organizadores, Rio de Janeiro: Telha, 2020

Dora Cavalcanti é advogada criminalista, diretora fundadora do Innocence Project Brasil, conselheira nata do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e, em 2020, foi uma das agraciadas pela OAB/DF com a medalha Myrthes Gomes de Campos.

Bruno Salles Ribeiro é advogado criminalista, mestre em direito pela USP e membro da diretoria do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Fonte: Consultor Jurídico