Por Amanda Locali, Juliana Matias e Mateus Silva Alves
O número de mulheres que exercem o ofício da advocacia no Brasil é praticamente equivalente ao de homens — e, em alguns extratos, já é maior. Um ótimo motivo para comemoração neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, certo? Nem tanto. Se é fato que no quesito quantidade as advogadas conquistaram a igualdade com seus colegas do gênero masculino, a realidade mostra que ainda há uma estrada longa e tortuosa a ser percorrida antes que elas sintam que o mundo do Direito, enfim, deixou de ser um território hostil.
Nos cursos de advocacia espalhados pelo país, há mais alunas do que alunos, assim como há mais advogadas do que advogados entre profissionais de até 40 anos. Segundo levantamento do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), a contagem geral mostra um empate técnico (51% a 49% para eles), mas basta olhar para cima para notar o tamanho do problema: apenas 29% dos postos de comando nos escritórios são ocupados por mulheres.
“É uma questão cultural, o sexismo é latente, mesmo com o número expressivo de mulheres na advocacia. Precisamos quebrar esses paradigmas e avaliar a capacidade da mulher para atuar em cargos de liderança ou outras ocupações. Os profissionais devem ser avaliados por suas habilidades, não por gênero”, opinou Mirian Queiroz, criadora da MediarSeg, primeira empresa brasileira especializada em conflitos do setor segurador.
Os depoimentos de Mirian e de outras advogadas ouvidas pela ConJur por ocasião do Dia Internacional da Mulher são preciosos para que se entenda essa distorção. Segundo elas, a ladeira a ser subida para atingir o sucesso na profissão é bem mais íngreme para as mulheres do que para os homens, que são “dispensados” de conciliar o trabalho com os afazeres domésticos, são sempre levados a sério nos tribunais e não têm o temperamento questionado quando assumem uma postura agressiva na defesa do interesse de seus clientes.
“Advogados são descritos como explosivos, contundentes, com uma pitada de admiração. Já as advogadas que atuam com igual contundência costumam ser taxadas de modo pejorativo, como briguentas, descompensadas. Toda essa cultura machista forjou uma autocobrança feminina que é bastante prejudicial a nós, mulheres”, explicou a criminalista Dora Cavalcanti, diretora fundadora do Innocence Project Brasil.
Uma consequência lógica (e nefasta) da falta de mulheres em postos de comando é a defasagem salarial entre elas e os homens que exercem a profissão. Segundo Karla Tonelli Mendes, do escritório Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, em cargos de gerência as mulheres chegam a ganhar por volta de 40% a menos do que os homens, ainda que cumpram a mesma função.
“Na minha experiência como advogada eu pude atuar em casos que tratam justamente da questão da falta de isonomia salarial. Uma questão impossível de ser afastada, pois as provas eram evidentes de que as pessoas com a mesma capacidade, mesma qualificação, e exercendo o mesmo serviço recebiam de 40% a 50% menos do que o salário da profissão, só pelo fato de serem mulheres”, contou ela.
Há 12 anos no comando do escritório Bumachar Advogados, Juliana Bumachar, especialista em recuperação judicial e falência, pode ser enquadrada no grupo das exceções à cruel regra a que o mercado submete as mulheres do Direito. Mas essa condição não faz da sua vida um mar de tranquilidade, longe disso.
“Já estive em diversas situações em que precisei colocar minha força feminina à prova, uma vez que lido com crise e em um mercado predominantemente masculino. Mas tudo é uma questão de se posicionar”, disse Juliana.
Nas barras dos tribunais
A vida não é dura para as mulheres apenas nos escritórios de advocacia pelo país afora. Nos tribunais a história é a mesma: pouca presença feminina, muita desconfiança e pouco respeito são problemas que elas enfrentam nas cortes brasileiras dia sim, outro também. Que o diga uma das pioneiras nesse terreno, a desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo Kenarik Boujikian.
“Quando eu ingressei na magistratura, em 1989, no TJ-SP, a dificuldade para uma mulher fazer parte da carreira era gigantesca e passava pelo fato de o concurso de ingresso ser identificado, de modo que as mulheres eram barradas já no nascedouro do concurso”, lembrou ela. “O aumento (de mulheres no tribunal) passou a ser significativo apenas quando foi alterado o sistema de ingresso, em razão de uma lei que foi sugerida pela Associação Juízes para a Democracia: as provas escritas deixaram de ser identificadas, de modo que pelo menos nas fases que antecediam a prova oral a banca não saberia de quem se tratava”.
Ainda assim, segundo a desembargadora, a realidade continua sendo amarga.
“A exclusão das mulheres sempre foi a marca do Poder Judiciário. Quando eu me aposentei, na sessão criminal, na qual havia 80 desembargadores, nós éramos apenas quatro desembargadoras. O Órgão Especial do TJ-SP tem 25 cadeiras e só teve uma mulher em 2018! E nenhuma mulher fez parte até agora do Conselho Superior da Magistratura do TJ-SP”.
Kenarik ressalta que o último Censo do Poder Judiciário apontou que o Brasil tem 35,9% de magistradas, número que vai caindo à medida em que sobe o nível da carreira: as mulheres são apenas 23% dos desembargadores e 16% dos ministros de tribunais superiores.
Para a professora Janaina Matida, o Direito no país ainda tem uma mentalidade masculina e é preciso lutar para que isso mude o quanto antes, do contrário advogadas e magistradas continuarão sendo tratadas como profissionais menos capazes do que os homens.
“O mundo do Direito ainda é muito masculino porque espera-se de nós um desempenho que supostamente é neutro, só que esse desempenho acaba favorecendo mais os homens. Porque no geral as mulheres compartilham uma agenda profissional e somam a essa agenda uma agenda pessoal, familiar”, argumentou ela. “A gente não pode ser avaliada a partir da regra da neutralidade, é preciso ter lugar para mulheres, é preciso ter lugar para mães, é preciso ter lugar para mulheres negras etc.”.
Luta dupla
E eis que chegamos a um ponto (ainda mais) delicado da realidade das advogadas no Brasil: se para as mulheres brancas a ladeira já é íngreme, para as negras ela é um verdadeiro paredão. As palavras de Juliana Souza, vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB-SP e ativista antirracista, são um retrato perfeito dessa realidade:
“O maior desafio de ser uma mulher negra no Direito é estar constantemente sendo confrontada com um sistema de Justiça majoritariamente branco e elitista, no qual pessoas como eu geralmente estão sentadas no banco das rés, especialmente no sistema de Justiça criminal, e muitas vezes ser desacreditada e ser questionada só pela cor da pele que eu trago”, relatou ela. “A gente encontra a barreira de não conseguir se enxergar nesses lugares, as pessoas não estão preparadas para lidar com a gente. Então é receber salários menores pelo mesmo exercício nos mesmos cargos, é estudar mais, investir mais na sua educação e não ter a recompensa no que se refere a um plano de carreira, à ascensão em outras posições. Estou falando isso de escritórios de advocacia, mas a magistratura também tem pouquíssimas magistradas negras, no MP são pouquíssimas as procurados negras, somos exceções”.
Priscila Pamela dos Santos, que nesta semana inaugura um escritório formado exclusivamente por mulheres, o Araujo Recchia Santos Sociedade de Advogadas, tem uma experiência de vida parecida e também sabe muito bem que precisa ter um espírito de luta ainda mais desenvolvido do que suas companheiras de profissão brancas.
“Eu vejo que uma pauta não se dissocia de outra, por exemplo, paridade de gênero e paridade de raça. Nós estamos em um país muito desigual com relação a gênero e raça, então não dá para ver só uma pauta isolada”, opinou. “Precisamos cada dia mais brigar para que mulheres tenham espaço, para que mulheres negras em condições de vulnerabilidade, mulheres indígenas, mulheres deficientes, tenham espaço. E essa é uma luta que tem de ser diária”.
Para as mulheres do Direito, portanto, 8 de março não é exatamente um dia de festa: é apenas mais um dia de luta.