Em novembro deste ano, inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil vão eleger as novas diretorias das seccionais espalhadas pelo país. Em São Paulo, pela primeira vez a entidade pode ser presidida por uma mulher. Trata-se de Dora Cavalcanti, advogada criminalista, dirigente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e do Innocence Project Brasil, iniciativa que busca reverter condenações de inocentes.

Em entrevista concedida à ConJur por videoconferência, Dora falou sobre a sua pré-candidatura; sobre a aprovação da paridade de gênero e as cotas de 30% para negros nas eleições da OAB; e disse que é preciso ter mais mulheres nos cargos de chefia da entidade. Para ela, não haverá igualdade na Ordem enquanto forem oferecidos às mulheres apenas os cargos de vice.

“Olhando para o quadro nacional, temos 18 mulheres vice-presidentes de seccionais. Por que não inverter? É a hora de ter alternância no nosso órgão de classe. Recebo convites dizendo que eu seria a vice ideal. Não adianta lutar por paridade se continuarem oferecendo para as mulheres sempre os cargos dois, três e quatro”, diz.

Ela também defendeu o voto digital nas eleições deste ano e disse que receber a jovem advocacia deve ser uma das prioridades da seccional de São Paulo. “A OAB deveria representar, especialmente para os profissionais mais jovens, um porto seguro. Um local para onde olhar e se sentir representado no cenário brasileiro e institucional.”

A entrevista, que será reproduzida abaixo e também pode ser vista no canal da ConJur no Youtube, clicando aqui, contou com a colaboração de Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo, e das advogadas Camila Torres e Sônia Rao. Elas enviaram algumas das perguntas que foram feitas para Dora.

Leia a entrevista: 

ConJur — Qual a importância de ter uma mulher na Presidência da OAB-SP?
Dora Cavalcanti —
 Implementar com efetividade a paridade de gênero, incluindo a equidade racial, já em 2021. Nesse momento em que vivemos — de retrocesso institucional, de risco para a democracia no Brasil — se faz ainda mais importante construir uma OAB que seja um espaço de resistência, que seja o porto seguro para o exercício profissional e que seja moderna e ousada. Olhando para o quadro nacional, temos 18 mulheres vice-presidentes de seccionais. Por que não inverter? É a hora de ter alternância no nosso órgão de classe. O IBCCrim elegeu Marina Coelho presidente, com Alberto Toron, vice. A Associação dos Advogados de São Paulo elegeu Viviane Girardi e uma vice mulher, a Fatima Bucker. Recebo convites dizendo que eu seria a vice ideal. Não adianta lutar por paridade se continuarem oferecendo para as mulheres sempre os cargos dois, três e quatro.

ConJur —  Como a experiência de dirigente do IDDD e do Innocence Project podem influenciar na sua gestão?
Dora Cavalcanti —
 As mulheres têm essa característica de trabalhar de uma forma colegiada, de modo coletivo na construção de seus projetos. Quando olhamos para a fotografia do conselho de presidentes da OAB — de todas as seccionais — e não vemos uma única advogada mulher, isso assusta. No IDDD nós fomos três presidentes mulheres. Eu fui uma das fundadoras do instituto. Então lidamos com todo tipo de questão para construir uma agenda, uma pauta clara e uma marca de atuação. O Innocence Project é uma experiência muito mais recente, que busca aperfeiçoar o sistema de Justiça Criminal a partir das principais causas que podem levar à condenação de inocentes. Somos eu e dois diretores, a Flávia Rahal, minha companheira também no IDDD, e o Rafael Tucherman. As mulheres vêm com tudo no terceiro setor. Por isso o momento é agora. A fotografia precisa mudar e as advogadas têm que ser representadas nos espaços decisórios.

ConJur — O que explica o fato de que a única candidata mulher na história da OAB-SP conseguiu um modesto quarto lugar?
Dora Cavalcanti —
 Estamos falando de uma liderança na advocacia que foi a Rosana Chiavassa, que participou efetivamente de um pleito como cabeça de chapa. Temos outros nomes importantes da advocacia associados historicamente com a OAB-SP. Não gosto de dar muitos exemplos nominais, mas se pensarmos em mulheres na OAB-SP, vamos lembrar da Zulaiê Cobra Ribeiro, com o seu vozeirão e a sua presença. Ou da Márcia Melaré, que foi tudo na OAB. As mulheres ainda são vistas em espaços masculinos como auxiliares para o funcionamento das coisas. É convidada a ser vice, secretária e adjunta. “Vamos pedir para aquela colega fazer a ata, porque a letra dela é mais bonita”. Isso já não se coloca. Temos o compromisso, nesse momento histórico, de implementar transformações. A OAB tem que ser esse espaço de vanguarda. Tem que estar forte e representativa no plano institucional.

ConJur — Se não houver mulheres em número suficiente para 50% dos cargos de direção e 30% para pessoas negras, a proposta de paridade se esvazia?
Dora Cavalcanti —
 É impossível que isso aconteça. Tenho certeza que todas as seccionais da OAB podem ter chapas respeitando a paridade de gênero e a equidade racial. O que não pode haver é a visão antiquada de que a mulher só tem contribuição para dar na Comissão da Mulher Advogada, que é importantíssima. Mas a mulher não pode estar ali para cumprir um requisito formal, sendo chamada na hora de inscrever a chapa, no último minuto. O mesmo vale para as cotas raciais. Essas duas agendas têm que caminhar juntas. Quando você conversa com uma advogada negra, ela diz que não aguenta mais ser chamada só exclusivamente para falar de racismo. Não devemos nem cogitar da impossibilidade de atender os requisitos, de forma verdadeira, nas instâncias decisórias, para os cargos diretivos e de conselho, inclusive no Conselho Federal.

ConJur — Considerando que o número de advogados formados cresce a cada ano, como receber e apoiar a jovem advocacia?
Dora Cavalcanti —
 A OAB deveria representar, especialmente para os profissionais mais jovens, um porto seguro. Um local para onde olhar e se sentir representado no cenário brasileiro e institucional. Isso faz falta especificamente na OAB-SP. Às vezes, quando você começa a advogar sozinho, está cheio de dúvidas: “Será que eu vou ter cliente? Como eu vou me organizar financeiramente em momentos de crise econômica total”? É fundamental ter um ambiente para aconselhar profissionais mais jovens e onde ocorra troca de indicações, para que se busque um primeiro emprego e se estabeleça uma rede de correspondentes. Tudo isso pode e deve ser feito no palco da OAB.

ConJur — Quais foram os principais problemas da advocacia durante esse período de isolamento social? As advogadas foram especialmente afetadas?
Dora Cavalcanti —
 Foram. Como a mulher dá conta da sua agenda de trabalho e da família? Eu não tenho mais filho pequeno, mas ouvi as dificuldades das colegas que têm crianças em idade escolar. Quando lemos os dados do que foi a pandemia para a mulher, em termos de retrocesso global, não só na advocacia, é assustador. Temos que pensar em uma OAB em que questões de home office e de agendas de pais e mães sejam para todos, não só para a mulher.

Mas há muitas dificuldades para a advocacia, em geral, trabalhar com paridade de armas. Narrar as razões do seu cliente por telefone, sem nem ver o rosto do seu interlocutor, é muito mais difícil. Outra semana eu estava fora de São Paulo participando de uma audiência de processo de Júri. Uma testemunha teve que ser ouvida em três dias distintos, porque, por um problema de conexão, o depoimento não vinha sendo gravado. Teve que ser refeito três vezes. E quanto menos conforto e ferramentas o colega ou a colega tiver para atuar, mais difícil será. Vamos ter que cuidar da advocacia nesse momento de pandemia, projetando o pós-pandemia.

ConJur — A OAB-SP ainda não se pronunciou sobre o voto online para as eleições deste ano. O que acha disso?
Dora Cavalcanti —
 Dezembro de 2020 foi um mês transformador para a história da OAB, com a aprovação do voto online. É uma agenda de modernidade. Há modos extremamente seguros de auditar o processo eleitoral. Todo mundo agora usa o certificado digital para peticionar e a advocacia está pronta para isso. A timidez da OAB-SP para falar abertamente sobre a eleição digital é injustificável. A advocacia quer ouvir um posicionamento oficial da nossa entidade. Hoje é inexorável que o processo tem que ser de modo online. Queremos que a eleição alcance o maior número de inscritos, que todo mundo tenha vontade de participar do processo e que vote pelo sistema online, da sua casa, de onde estiver. É uma obrigação implementar o voto online.

ConJur — Mudando de assunto, em um diálogo entre procuradores, foi sugerido que advogados “agressivos” deveriam ser substituídos para que acusados na “lava jato” contratassem profissionais mais “mansos”. A declaração foi feita em referência à senhora, que defendia Marcelo Odebrecht. Como foi a sua recepção ao ver esse diálogo, e qual é o papel da OAB na defesa de seus inscritos em momentos como esses?
Dora Cavalcanti —
 Agressivo, nesse contexto, significa apontar ilegalidades que estavam sendo praticadas no nascedouro da operação “lava jato”. Hoje se vê com mais luz que a “lava jato” foi um laboratório de tudo o que não deveria ocorrer no plano processual. Tive a oportunidade de dar uma entrevista para a Folha de S.Paulo em que eu narrei, ainda sem ter lido essas conversas, o episódio em que fui literalmente retirada da sala da delegacia da Polícia Federal de Curitiba, em que o meu cliente ia prestar depoimento. Dois delegados, de dedo em riste, disseram que eu não poderia acompanhar o meu cliente, porque eventualmente eles estavam cogitando me investigar.

Isso foi extremamente traumático. Naquela época, eu não teria conseguido seguir minha atuação se não fosse ter sido amparada com muita força e presteza pela Comissão de Prerrogativas, tanto da OAB-PR, quanto da Comissão Nacional de Prerrogativas. O doutor Pedro Paulo voou para Curitiba para entender o que estava acontecendo. Diante do presidente da Comissão Nacional de Prerrogativas, o discurso do delegado foi o de que não era nada daquilo, que eu não estava sendo investigada por nada e ele estava brincando. Isso mostra como a defesa das prerrogativas do profissional é essencial. Nessa última onda de revelações nós vimos, com horror, o professor Gustavo Badaró, conselheiro federal por São Paulo, tendo as suas conversas com um cliente interceptadas. É muito chocante. Precisamos fazer as pazes com a legalidade.

ConJur — Durante a “lava jato” também foram muito comentados os honorários recebidos pelos advogados. Esse é um fenômeno que surgiu com a “operação”?
Dora Cavalcanti —
 Não. Essa questão sempre vem à tona. Volto para a importância da OAB como diretriz, como referencial ético para o profissional, porque esse não é um tema simples. Às vezes o profissional mais jovem pensa que vai cobrar uma causa em três parcelas. Aí o processo leva três, seis, dez anos. É muito importante compartilhar sobre esses temas, que às vezes são proibidos.

ConJur — A OAB-SP faz um bom trabalho de estimativas de honorários?
Dora Cavalcanti —
 Não temos essa diretriz para o advogado autônomo. O que existe é a referência de remuneração dos advogados que atuam no convênio. Essa é uma remuneração considerada abaixo do que deveria ser, porque a atuação do advogado é, em regra, desafiadora. Você recebe outorga de poderes para representar alguém. Eu falo mais em nome do Direito Criminal, mas é assim também no trabalhista, na área de família, em litígios societários etc. Procurando fazer na OAB uma discussão olhando para os problemas crônicos: a dificuldade de remunerar bem o advogado que atende o convênio e a Defensoria Pública, e dar também aos profissionais meios para fazer um bom trabalho. Trabalhei por 15 anos em um prédio na avenida Liberdade 65, que era uma bela escola de criminalistas. Eram escritórios pequenos, mas a gente consultava o escritório do andar de baixo, do de cima, porque às vezes é nessa troca que você enxerga a melhor solução para uma causa. E tem que discutir abertamente, inclusive a questão da remuneração digna.

ConJur — Diversas decisões negam o pagamento de honorários a advogados dativos. Isso é prática comum e é possível que a OAB-SP faça algo sobre isso?
Dora Cavalcanti —
 É um escárnio. Você não pode exigir que o profissional faça um bom trabalho, com empenho e dedicação, se não dá a ele uma remuneração digna. Essa é uma prioridade da OAB. Eu venho desse universo. A presidência investe nesse discurso de que o advogado da capital, da elite, o profissional dos grandes escritórios desconhece a realidade de uma advocacia do interior, da atuação de balcão. Eu considero isso uma falácia. O desafio é o mesmo para quem advoga no dia a dia forense. Não adianta eu estar em um instituto que advoga pro bono e criticar o trabalho de quem está atuando sem ter os meios para fazer aquele trabalho.

Eu gosto de pensar que os jovens se sentem mais representados e fazem melhor o seu papel quando descobrem a sua vocação. Quando conseguem se qualificar, avançar na profissão e ver relevância na sua atuação. Assim, é bacana pensar na advocacia mais unida, na advocacia que pretende ser respeitada em uma posição mais horizontal. As realidades são distintas? São. Mas você está ali para olhar o coletivo. Afinal de contas, quando você cuida do caso de um cliente, tentando reverter a violação de um direito, cada atuação individual é também coletiva. Tem essa beleza na nossa profissão. Você advoga para uma causa específica, mas sabe que ela pode ter um efeito multiplicador. É importante que tenhamos essa visão de avanço de classe.

Fonte: ConJur